As ancas grandes e as cochas grossas balançavam suavemente
poucos metros à minha frente. Orinde, a guerreira núbia que nos
acompanhava apeara algumas horas antes, assim como Silvo, o batedor da tropa
regular de Santa Daoid. Eu permanecia sobre o baio gozando do conforto que
apenas uma longa cavalgada poderia proporcionar, perdendo meu olhar de tempos
em tempos na paisagem das montanhas ou do corpo de Orinde.
Ela parecia não perceber ou não notar minhas olhadelas,
mas Silvo vez ou outra me encarava, descrevia um nada discreto arco com a
cabeça em direção à moça e sorria de forma louca e maliciosa.
Paramos depois de algumas horas. Aquelas pessoas, como
aventureiros experientes deveriam ser mais acostumadas ao lombo de um cavalo,
mas eu parecia muito mais à vontade sobre o baio do que eles sobre os
imperiais, muito mais robustos, velozes e resistentes que meu velho pangaré.
Apeei e preparamos acampamento, nada sofisticado, apenas três barracas armadas
em cordas, uma fogueira acesa em uma vala e três turnos de guarda. Abri uma de
minhas garrafas e deixei minha Salamandra Larápia correr livre por aí. Ela
disse algum despautério que ignorei solenemente e apenas confiei em sua voz
esganiçada e boca suja para nos avisar caso algo ruim se aproximasse.
Jantamos à luz das estrelas e ao beijo das nuvens baixas.
Orinde e Silvo começaram a conversar em uma língua
diferente das línguas faladas na Arcádia. Uma língua com “ós” arrastados,
palavras terminadas bruscamente, “uãns” e “t’pas” graciosamente colocados em
sílabas bruscas, que saindo de suas bocas mais parecia um latido do que uma
palavra propriamente dita. Ignorei a falta de cortesia e me concentrei em
alguns documentos dados por nosso contratador. Vez ou outra, palavras
indecorosas sobre mm e comentários jocosos sobre meu jeito de vestir, ou falar,
ou cavalgar, ou olhar, ou o que quer que fosse rendiam sonoras gargalhadas.
Sempre preferi me fazer de ignorante. Faz com que pessoas ignorantes se sintam
mais à vontade perto de mim. Isso faz com que abram a boca com facilidade.
Eles não sabem o que estão fazendo aqui, o contratador
não disse tudo que deveriam saber, apenas mandara duas pessoas jovens e metidas
a espertas em uma missão de fim duvidoso e com recompensas pouco apetitosas.
Os comentários passam para o meu cheiro. Ao que parece
ambos me acham “cheiroso” demais. Não sei se isso é um comentário bom ou ruim,
mas começo a temer pela minha segurança, afinal ambos me olham como se eu fosse
um pedaço suculento de pernil de javali. Meus pensamentos são interrompidos por
um arroto em miniatura, um palavrão e som de um escarro. É Biltre, minha salamandra
larapia. Derramando meio quilômetro de palavrões ela me informa que quatro
homens se aproximam pelo matagal. Orinde e Silvo levantam-se num salto, não
pela informação ouvida, mas por verem um lagarto avermelhado do tamanho da
palma da mão falando com voz gutural e profunda. Ambos se benzem, beijam a
guarda de suas armas e a palavra “bruxaria” só morre nos lábios do batedor,
pois a luz de tochas mal cobertas denuncia a presença de dois homens.
Sacamos nossas armas. Empunho uma espada, presente de meu
amado pai. Orinde gira um enorme machado, monstruoso e delicado ao mesmo tempo,
enquanto Silvo desaparece nas sombras. Ouço o retesar da corda do arco. Biltre
se recolhe à sua garrafa, sem que ninguém o veja.
Um dos homens se aproxima e nos encara. Ele não parece
ser destas bandas. “São só dois estrangeiros” grita, “Então resolva isso logo”,
recebe em resposta. O homem é rápido, saca a espada e vem. Tomba dois metros
antes de nos encontrar, vítima de uma das flechas de Silvo. O outro leva a mão
à cintura e saca uma pequena trompa. Lento demais. Orinde gira o machado e os
olhos do homem se fecham para sempre. Atrás deles, um terceiro homem que ainda
não havíamos visto soa o alarme. Ouvimos o bater de cascos e nos preparamos.
Devo me lembrar de diminuir o volume de álcool que dou a
Biltre. O maldito ente nos alertou de quatro homens. Sete mais apareceram.
Focada nos que pareciam mais fortes, Orinde girou o machado e cortou carne,
ossos e tendões. Um cavalo tombou e apavorado, seu cavaleiro tentou fugir. Erro
de principiante. Outros dois encontraram os criadores graças a flechas bem
colocadas. Orinde tratou de despachar mais dois soldados em terra. Um homem
truculento veio em minha direção. Quando se identifica um mago ou sacerdote, é
comum que homens de armas foquem seus ataques neles, afinal, a mais básica
magia pode ser um suporte valioso durante uma batalha e há ainda a idéia de que
magos são frágeis e indefesos, ervas daninhas de um campo de batalha. Admito o
fato de não sermos tão fortes quanto um guerreiro ou clérigo, mas eu já estive
em combate. Já cavalguei nos campos varegues com espada em punho. Tenho apenas
23 anos, mas já lutei em mais paredes de escudos do que certamente qualquer um
destes homens. Vi a deusa morte de perto, afaguei seu rosto e beijei-lhe a
face.
Eu conheço a canção das espadas e mais importante que
isso, conheço o nome verdadeiro da minha.
Uma torrente de tripas e sangue cozidos brotou em fúria
do ventre de meu agressor. Aesterin, minha espada, sedenta de
matança e feliz pelo júbilo da morte fez seu trabalho. Um pequeno truque de
iniciantes fez o resto, preenchendo com fogo o buraco aberto pela lâmina.
Aesterin encontrou outro alvo antes mesmo que eu percebesse, e um pequeno raio
faiscando de meus dedos deixou o ar com cheiro estranho e o corpo do bastardo
envolto em fumaça.
Infelizmente não fui rápido o bastante para me desviar de
outro golpe e algum idiota arrancou um talho de minhas costas. Revidei com
raiva, dor no olhar e sede de vingança, mas o golpe de espada foi aparado por
um escudo. Orinde e Silvo terminavam seu serviço e meu agressor preparava uma
nova estocada. Ele girou, errou por pouco meu braço esquerdo. Acertei-lhe um
chute bem dado no meio das pernas e sei que o fiz bem, mas embora tenha
reclamado de dor, o homem ainda estava de pé, girando o corpo com dificuldade,
mas acertando a borda do escudo na minha mão da espada, jogando Aesterin a um
metro de distância, preparando um novo golpe e fazendo com que eu me
arrependesse de estar ali. Mais sangue jorrou. Mais um talho para minhas
lembranças.
Perdi a paciência.
Prefiro não usar magia em combate tão próximo. Magos
iniciantes acham que bolas de fogo e relâmpagos podem ajudar nos momentos
difíceis, mas o rebote dado por elas pode atingir aliados e inimigos. Prefiro
coisas mais sutis, com menor chance de falhas. Luz. Um jato potente e
concentrado de luz na altura dos olhos. Antes que o agressor se recupere, um
pouco mais de luz, agora um flash multi-colorido. Ele cambaleia, toca as feridas
e aperta o estômago. Um jorro de vômito surge de sua garganta, e atordoado, ele
cai. Com a fineza e honra de um bom vencedor chuto-lhe o rosto e piso em sua
garganta por tempo o suficiente para fazê-lo perder a consciência. Bonito de se
ver? Não. Eficiente? Não. Prazeroso? Não tenha dúvidas.
Dos dez homens, oito encontraram seu fim naquela noite.
Outros dois ainda respiravam, mas apenas por nossa bondade e nada mais. Ambos
lutaram bem e bravamente, sem a covardia de seus companheiros e por este motivo
foram poupados, ou pelo menos por este motivo eu poupei meu agressor, que para
minha surpresa não era um homem, mas uma mulher de pele morena, cabelos e olhos
castanhos, nariz adunco e orelhas de abano. Era baixinha, magra e de olhar
agressivo. Rosnou para mim alguns insultos, mas como sempre eu a ignorei. Ela
era menos que um ser humano, era uma mestiça, mas lutara bem. Inquirimos os
dois guerreiros. O homem, Argos, mostrou-se boca aberta, nos
contando sobre um grande dono de terras os havia contratados, oferecido três
moedas de prata por nossas cabeças. Cinco por Orinde viva e em condições de
procriação. A garota, Aella, mostrou-se menos cooperativa,
mas nada que um pouco de taumaturgia bem colocada não
resolva. Em meio a lagrimas e tremores, mais informações despencam: eles foram
infelizes em sua missão. Ao que parece a idéia era nos seguir até que
conseguíssemos nosso saque e somente DEPOIS encerrar nossas carreiras, mas
quando acampamos, preferiram nos atacar para economizar tempo. Péssima decisão.
*****
Cavalgamos por mais dois dias, uma insistente e pesada
garoa cobre a estrada. Argos e Aella atrasam o passo andando atrás dos cavalos.
Um cheiro pungente nos acompanha a cerca de meio dia, eriçando o pelo dos
cavalos e embrulhando o estômago. Não sei do que se trata, mas todos os meus
companheiros afrouxam as armas. O medo torna-se palpável e após algumas horas
decidimos que é melhor deixar nossos prisioneiros livres e armados.
Chegamos enfim ao local de nossa campanha, ruínas de um
antigo templo ou forte, não é possível dizer com precisão, principalmente
depois que o tempo faz sua mágica e devora até a mais dura pedra. O por do sol
acompanha nossa chegada e optamos por acampar dentro das ruínas após
verificações iniciais. Vestígios de um enorme pátio, tão grande quanto um
pequeno castelo ou o salão de um lorde, com muralhas de pedra ainda de pé mesmo
que sem o esplendor de outrora, construção com blocos impossíveis de serem
levantadas por homens comuns, unidas de forma tão perfeita que nem um fio de
palha pode passar por suas junções. Construções do povo antigo que um dia
dominou nossas terras: Os Yamí.
Limpamos o lugar para evitar vermes e armadilhas e
montamos acampamento. O cheiro pungente que nos acompanhava morreu por alguns
instantes, mas eu desconfiava que o que quer que fosse apenas usara o vento
para se esconder. Silvo e Argos pareciam pensar o mesmo pois deixaram seus
arcos e flechas em posições estratégicas perto do corpo. A noite chegou fria e
molhada. Com dificuldade acendemos a fogueira e cozinhamos nossas rações.
Inquirimos os prisioneiros – armados, libertos e perigosos – mas nenhuma nova
informação foi obtida. O que sabemos é que são frísios mercenários, ex-escravos
lutando pelo pão de cada dia, mesmo que regado a sangue. Ambos sem sorte pois
Argos sempre seria um ex-escravo, mesmo que fosse um arcadiano e Aella sempre seria
uma ex-escrava E mestiça, o que não lhe garantiria um bom casamento e ainda a
impediria de entrar em várias cidades do reino. Ela me interessava, não como
Orinde: a núbia era vistosa e corpulenta, sensual no andar e na fala. Adoraria
fazer alguns mestiços com ela. Aella era magra, usava roupas demais, pele
áspera e com os cabelos curtos como estava mais parecia um homem magro ou um
jovem afeminado do que uma mulher. Era deselegante, desgrenhada e... O que foi
isso?
Nossos olhares convergem para o mataréu próximo e dele
uma imensa figura se aproxima rosnando. O fedor pungente desce como um soco no
nariz e por pouco não vomito a ração. A besta fera, uma cruza de demônio e
animal, com garras poderosas, presas brilhantes, pelo rajado e dorso grande
como o de um estivador. Duas presas do tamanho de adagas se projetam do crânio.
Um Dentes-de-sabre.
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