O deus sol saboreava despretensiosamente o doce
de gemas trazido como oferenda pela irmã Maria. Embora fosse uma divindade,
preferia viver entre os mortais e aprendera com o tempo a desfrutar de pequenos
regalos reservados aos deuses, mas que não poderiam ser apreciados se estivesse
em seu plano de existência. Muitas vezes, o mais próximo que poderia chegar da
sensação que desfrutava naquele momento era receber as energias desprendidas
das oferendas, quando eram corretamente enviadas.
Thalion se recostava na confortável cadeira de
cedro confeccionada por um carpinteiro local e enfeitada por um de seus filhos,
um artesão de vila, acostumando com entalhes rústicos e práticos, muito
diferentes daqueles encontrados nas grandes cidades. Thalion gostava daqui, uma
pequena vila nos arredores de Forte Solaris, com pouco mais de quinhentos
habitantes que conhecia pelo nome, os havia batizado pessoalmente e que
assistira o parto. Nada havia de especial naquele lugar e mesmo o convento das
Irmãs Admiradoras da Graça era simples demais para ser considerado um ponto de
visitações. A única capela do lugar era pequena a ponto de ser pouco utilizada,
preferindo-se grandes celebrações campais, ao nascer do sol em honra à
divindade – que muitas vezes estava ali presente.
A divindade olhava para tudo aquilo de uma forma
despreocupada, afinal, o sol sempre nasce.
Com ele, estavam Santo Avan, falecido a poucos
anos e ascendido ao status de imortal – não que já não o fosse, mas sabe como
é, algumas coisas devem ser formalizadas – seu sumo sacerdote, Avan, o velho e
um de seus paladinos, Avan, o Jovem. Era estranho que um santo ou divindade
tivesse apenas sete paladinos ativos, enquanto o deus-sol possuía um verdadeiro
exército de guerreiros santos e aquela menina, como era mesmo o nome? Belona!
Sim, aquela deusa Belona possuía um exército de guerreiros santos a sua
disposição. Era estranho, mas Avan se contentava com sete paladinos. Thalion se
viu divagando novamente, olhando seus servos e achando graça em Helio, seu
acompanhante, um cavaleiro de meia idade e peso muito acima do ideal, jogado em
um canto, lutando contra o sono que aquela tarde quente e tranquila poderia
trazer. Divagar... algo que aprendera com os mortais e...
_“O senhor
concorda, Divindade”, dirigiu-se Avan, o velho ao sol-vivo.
_“Claro,
claro”, respondeu com a voz de mil anjos. “Iniciemos os preparativos assim que possível”. Os três homens de
nome Avan olharam para Thalion com certa preocupação. Seus pensamentos mais
profundos temiam que sua divindade estivesse preocupada demais com algo
misterioso e importante, além da compreensão mortal, que traria o caos e a
destruição à Celéstia. Mas não. Era algo muito mais simples do que isso.
O deus-sol estava entediado.
Da pequenez de sua divindade, o deus-maior sentia
uma ponta de inveja daqueles mortais, tão frágeis e tão superiores. Ele nunca
fora mortal, sua semente já havia nascido divina. Ele nunca tivera que evoluir
ou conquistar seu poder, apenas o era. Lembrou-se de quando crucificado por
divindades malignas chegara a encostar no solo de Suspéria, o lar dos
mortos, e que nunca sentira-se tão vivo quanto no dia em que morreu, mesmo que
“viver” e “morrer” não façam muito sentido para quem nunca nasceu e nunca
morrerá. Mas ainda sim sentia inveja de estar ao lado de seres que poderiam ser
o que quisessem, ao contrário dos deuses, nascidos prontos.
E novamente o deus-sol pegou-se a divagar.
A reunião seguiu-se tarde à dentro. Os três
homens discutiam sob o olhar terno do sol-rei, aguardando sua aprovação ou
desaprovação, elaborando planos para socorrer as regiões ermas, sofridas pela
seca causada pela destruição de uma represa Bulton vinte anos antes.
Thalion saboreava o ultimo pote de doce de gemas
sob piadas de seus serviçais mais próximos que comparavam sua voracidade à de
Helio, e que o atentavam para um volume visivelmente inexistente em sua
barriga, fruto dos tais doces de gema,
mangavam.
Em meio à gargalhadas, Thalion observou
serenamente a figura enorme, maciça e escamosa parada na porta do casebre. Ele
era alto, com a enorme cabeça crocodiliana a poucos centímetros do teto.
Trajava uma tanga branca feita com mortalhas e símbolos estrangeiros. Os quatro
homens demoraram alguns instantes para repará-lo, mas num piscar de olhos
estavam de pé, com armas em punho. Uma pequena prece foi feita e invocações
começaram a ser conjuradas. Thalion observou a cena e com um aceno de mãos
ordenou a baixa das armas.
_“Você
demorou, Tebeck. Eu o esperava a mais de sessenta anos.” – disse o solar
lambendo a última colher de doce.
_“Isso não
importa, irmão. Isso não importa” – respondeu o trevoso num rosnado.
“_Sabes das
notícias?” – Continuou – “Sabes das
novas decobertas?”. “Como não
saberia, tu és o sol, não?”. “Tú tudo
vês”.
Inabalado pelo assunto, o deus-sol fitava o
sombrio com desdém e pouco interesse. “_Ainda
não disseste ao que veio...”.
“_Negócios”.
Respondeu o sáurio.
“_Negócios...”
Respondeu o solar.
Excluídos totalmente do assunto, os três que se
chamavam Avan e Helio, o guerreiro, tentavam concatenar aquela cena. Mesmo para
Avan, o Santo, que alcançara um lampejo de divindade após sua morte, era
impensável que aquela entidade estivesse ali. Por séculos, os dez malignos eram
nada mais do que uma lenda para assustar criancinha e fiéis mais heréticos, mas
seu eu
aterrador deixava claro quem ali estava. Tebeck, senhor dos mortos-vivos e dos
habitantes do pântano. Devorador de espíritos, pai de toda a podridão, juiz de
tudo o que é mal. O Grande Crocodilo.
Um arrepio de medo correu-lhes a espinha.
“Corrija-me
se estiver errado” – Thalion nunca estava, afinal, era um deus – “mas se tu estas aqui, teus irmãos também
estão. Não é?”
“Todos
menos dois”. Respondeu o obscuro indo à mesa de oferendas. Um grande pedaço
de carne assada, oferenda do fazendeiro Cletus,
é devorado com poucas e elegantes mordidas. Sua prece se lança ao plano divino,
sendo capturada por um dos tepherins de Thalion. Aquele bom homem, mais do que
os outros, teria sua prece ou vida, mas naquele momento Cletus sentiu um
calafrio tomar-lhe o corpo e Thalion sabia que os sonhos noturnos do bom homem
seriam infestados de maus agouros. “Dois
de meus irmãos não estão aqui”. “O
Pesadelo fez sua morada nas terras ao sul e não deseja mais participar de
disputas e o Baixo, bem, como posso dizer, era bem saboroso.” – O
comentário fez Thalion arrepiar, mas não sabia se aquilo era realmente verdade
afinal, ambos eram deuses, e dois de seus atributos mais característicos, a
onisciência e a onipotência, pouco valiam em um combate de iguais. – “Mas os outros sete estão bem interessados no
novo quinhão de mundo”.
“_Ainda não
disseste ao que veio Tebek”.
“_Não quero
concorrência.” – disse sem titubear – “Tú
prezas pelo monoteísmo. Eu também. Lutas para ter algo só seu. Eu também.
Queres ser o único. Eu também”.
“_Não
compreendo”, disse o sol-acima-de-todos diante de quatro olhares
incrédulos. “Queres que não interfira?”.
“_E o que
eu ganharia com isso”, questinou o olho-dos-céus com notável desgosto na
voz.
“_A canção
que tanto queres”, disse o crocodilo. Os olhos de Thalion brilharam.
“_Mas não
desejo sua resposta agora, ó Senhor dos Céus, quero sua resposta em batalha.
Quero ver sua honra lendária ser provada. E então, a canção esperada soará tão
alto quanto a voz da criação”, disse o escamoso.
Da mesma forma que veio, o deus-crocodilo se foi,
deixando um pesado cheiro de água apodrecida que Avan, o Jovem, indagou-se se
sempre estivera lá ou se sua percepção voltava junto ao fim do choque. Os
quatro homens olharam para a divindade. Agora não tão imponente. Agora não tão
brilhante. Os homens o fitaram como se uma eternidade houvesse ali passado. A
Canção, o profano dissera.
Os olhos de Thalion fitavam o vazio. Os mortais
ali presentes nada podiam fazer ou pensar. À sua frente, o deus sol, o
crucificado, o renascido, o portador da nova vida, o salvador, a voz das
colheitas, o um sobre todos, o Thalion renascido, abatido com poucos minutos
regados de palavras sem sentido, alisava as cicatrizes dos pulsos, recordação
de sua ordália. Uma pequena contração em sua face. Dor? Ódio? A razão voltando
a sua essência? Pouco importava, pois, enquanto a divindade se levantava um mar
de ordens os cobria. Ele tocou os ombros Avan, o jovem e lhe rogou dois
pedidos. O primeiro, queria que fosse seu campeão. O segundo o pegou de
surpresa “_Quero ver Belona” – disse
– “_Tragam-na aqui”.
“_Os
profanos voltaram, Avan. Teremos grandes problemas”.
Naquela manha o sol nasceu tímido. Grossas nuvens
se formavam à sua frente. Eram os primeiros dias de inverno e a neve seria
pesada. Os habitantes dos ermos precisariam de água o quanto antes. Thalion
tentou se lembrar pela última vez de sua canção adorada, mas não pode. Ela
estava perdida. Sentou-se ao ver a porta abrir. Era Irmã Maria com um pote de
doce de gemas. Ele a recebeu com um abraço caloroso, sincero e quente.
Alisou-lhe os cabelos e lhe prometeu que quando sua vida chegasse ao fim, seria
sua cozinheira no além-mundo. Ela sorriu. Ele sorriu.
Sentado em sua solidão, o deus-sol provou o doce
de gemas. Era tão bom quanto o do dia anterior, mas hoje, havia um tom amargo
no sabor, um ranço ocre, um cheiro forte de água do pântano. Tebek tinha em suas
mãos um tesouro que há muito havia perdido e lhe dado uma opção porca,
esdrúxula e humilhante. Algo que nunca faria. Nunca.
Pelo menos, assim desejava.
Sérgio "O Alquimista" Gomes
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